Regresso a poente

Regresso a poente

selecção 

 

 

 

É-me ditado o poema que medito.

Não sendo autor do dito      me limito

a transmiti-lo escrito.

(Mais uma vez      repito.)

 

 

Escriba do ditado sou fadado.

Não fadado para ser autor do fado

meditado

nem para ser autor      do dito que transmito.

 

 

...Nem por ele respondo em julgamento.

Me limito a servir o pensamento

que não vem assinado.

 

 

Me basta que o ditado me perfume

e da minha fogueira seja lume

que para o meditar seja inspirado.

 

 

 

                                                              Fevereiro, 2010.

 

 

 

 

Tudo é brincadeira      nada é sério

a não ser a certeza de morrer.

E nem mesmo a certeza sê-lo-á

que realmente séria só será

a morte      quando já acontecida.

 

 

Se na vida      não há      nada constante

nada é sério na vida.

Tudo é       passatempo no recreio.

Facécia tudo é       que seja instante

salvo o tempo que passa de permeio.

 

 

O tempo somos nós pensando o tempo

enquanto passatempo.

Porém      não é tempo que passa.

Somos nós que passamos

no espaço do corpo que habitamos.

 

 

Laica é a farsa      da comédia humana

não tendo      de divino      coisa alguma.

Vaidoso é todo o gozo.

Todo o prazer      quimera

que o desejo ressuma.

 

Crónicos doentes       numa sala d’espera

duremos      madurando pacientes

levantando levantes no poente.

 

                                                              Fevereiro, 2010.

 

  

 

Aprumo      transparência      nitidez.

Do ângulo e da linha      rectidão.

Contra-cultor da prosa fatiada

da sintaxe confusa      remelada.

Compositor de música verbal

métrica e rima cultivando sempre.

 

 

Alergia ao poema escorregado

avalanche de frases arrastadas

verbo d’encher      despenteado a esmo

sombrias humidades cavernosas.

Clima de pesadelo pegajoso

destroços e ruínas por cenário

Tudo isso abomino fundamente.

 

 

Da classe a que pertenço consciente

sou clássico vate militante.

Não presto devoção à quantidade

nem sacrifico aos deuses hodiernos

dos esfíngicos enigmas selectivos

das mentes competentes para entrar

na Tebas actual da poesia.

 

 

Música da palavra      limpa e límpida.

Assim seja o poema      para sempre

em sua rigorosa geometria.

 

 

 

                                                           Agosto, 2009.

 

 

 

Em passos lentos decifrando enigmas

desfaço laços que me deixam lasso.

Da corda bamba me despeço      abraço.

Espelho baço      despedaço estigmas.

 

 

Orfeu      não voltarei despedaçado

em busca da perdida identidade.

No inferno sem lira      delirado

calado      enfrentarei a eternidade.

 

 

Desvanecido o canto do encanto

num canto do inferno me decanto

e no inverno hiberno terminante.

 

 

Saiba dormir      quem lira já tangeu.

Que noutro não desperte o mesmo eu

e belo      o fogo seja      eterno instante.

 

 

 

                                                       Dezembro, 2009.

 

 

 

 

Do oriente guardei      sem nunca lá ter estado

o hábito d’entardecer      para o levante voltado.

 

 

E regressado ao poente      para nele me deitar

orientado serei      no momento de passar.

 

 

No instante m’esqueci      na duração me lembrei.

Da memória fiz história      e do passado passei.

 

 

No oriente que fica      no lugar do sol nascente

orientado repouse      não sendo de ser presente.

 

 

 

                                                                Janeiro. 2010.

 

 

 

De regresso a Corinto      Édipo consuma

o quanto julga incesto mas não é.

Cumprindo falsamente a profecia

por tanto que fazê-lo pretendia.

 

 

Tirésias em Corinto não havia

não havendo      por isso      desenlace.

Corinto      sem Tirésias      carecia

de moral pela qual se castigasse.

 

 

Impune libertino      Édipo amava

sua mãe adoptiva que tomava

por sua mãe de sangue que não era.

 

 

E temendo a vingança paternal

Édipo      entregou o seu  rival

à mortal crueldade da quimera.

 

 

 

                                                        Janeiro, 2010.

 

 

 

A única bagagem da viagem

de regresso a poente      era a imagem

do lastro do balão a ser largado.

 

 

 

                                                  Fevereiro, 2010.

 

 

 

                            

 

Em seu balão solar      voando baixo

Apolo vê Jacinto à beira de um riacho.

E de tão belo efebo entusiasmado

lhe lança um disco      pelo sol dourado.

 

 

Mas em lugar da mão o disco atinge

a cabeça do jovem desgraçado.

Morto Jacinto      Apolo apaixonado

do corpo inerte      faz brotar a flor

 

 

que doravante Jacinto se chamava.

Principiava então a primavera

que a flor de Jacinto anunciava.

 

 

Na corola da flor      lá bem no fundo

o nome de Jacinto      abreviado

pelo amor de Apolo era gravado.

 

 

 

                                                                        Março, 2010.

 

                                                 

                                                I

 

 

Como peças de um puzzle transparente

cada uma incolor mas de forma diferente.

 

 

Não sei por quê mas sinto

haver uma razão para ser incolor

aquele labirinto.

 

 

 

Jovem esbelto e belo      ultrapassaste leve

de meu pesado tronco      o passo curto e lento

na postura do velho      curvado pelo tempo.

 

 

Só de costas o vi na leve rapidez de seu passo sem pressa.

Depressa se alongava a distância entre nós

feita d’espaçotempo.

 

 

 

Labiríntico amor das idades diferentes.

Para te ver corpo inteiro      não te vendo de frente

levantei a cabeça e sorri      descoloridamente.

 

 

 

                                                                   Setembro, 2010.

 

 

                              II

 

 

Tudo era leveza

tudo era frescura

tudo era beleza na sua juventude.

 

 

Vestia de claro      limpeza e limpidez

e calçava sandálias.

Ao ombro transportava discreto saco branco

de linho natural.

 

 

Tudo nele era simples e sem tédio.

A palavra      serena mas segura.

Não tomava atitude

não tomava remédio

e tocava alaúde.

 

 

 

                                                           Setembro, 2010.

 

 

 

                                III

 

 

Seu cabelo era claro e ondulado

dele fazendo um arcanjo      que num fresco de Piero

não obstante de costas      houvera sido pintado.

 

 

Que o amor da beleza permanece constante

no olhar do. amante.

Seja qual fôr sua idade

seja qual for seu estado.

 

 

 

                                                          Setembro, 2010.

 

 

 

                               

Viver na sabedoria é desfazer-se do lastro.

Não sobrepor      alijar.

Não mais pesar      levitar.

Não mais prender      aprender

(ou seja     se desprender).

Não se agarrar      se largar.

Da queda fazer ascese

pois é o mesmo caminho      que se sobe e que se desce*.

Suba ou desça      a vocação do balão é voar

e se pousar      aterrar mas sem terror.

Pés na terra      mas a cabeça no ar

para ir      seja onde for      pelo saber do sabor.

 

 

 

                                                               Novembro, 2010.

______________

 

* Heraclito.

 

 

 

Era um jardim repleto de surpresas.

Beladonas cruzadas com papoilas

nardos apaixonados por camélias

buganvílias flirtando com gardénias

heliantos seduzidos por mimosas

narcisos cortejando amores perfeitos

rododendros em êxtase com rosas

violetas namorando com jacintos

lilases a rimarem com rapazes

e lírios em delírio com martírios.

 

 

Havia tudo isso e algo mais.

Andorinhas namorando com pardais

bem-te-vis a cantar com beija-flores

e araras a dançarem com pavões.

Peraltas entre si se masturbando

e sécias      a chorar      se desfolhando.

Havia      havia ainda mais assombros

como estátuas a levarem sobre os ombros

as crianças perdidas no jardim.

- Para rimar com fim.

 

 

 

                                                       Novembro, 2010.

 

 

 

Esquece o poema que perdeste      por havê-lo esquecido.

Esquece o poema que esqueceste      por havê-lo apagado.

Esquece a diferença indiferente entre o bem e o mal.

Esquece o infante e o mancebo que recordas ter sido.

Esquece a cerejeira     a nogueira      as casas e os quintais.

Esquece a metáfora e o mito      a teia do sentido figurado.

Esquece o paralelo      a simetria      a métrica e a rima.

Esquece o esquecimento e      dando a volta por cima

esquecendo por instantes a palavra – medita sem ditado.

 

 

 

                                                               Dezembro,2010.

 

 

 

 

Corria pela casa vento de chuva forte

vindo de sudoeste e a caminho do norte.

A casa      toda ela      era passado e luto

na mudez que recusa desvelar o oculto.

 

 

Passara muito tempo desde a última vez

que se ouvira uma voz nessa casa vazia.

Diziam muita coisa      mas tudo se dizia

na tácita reserva de um prudente      talvez.

 

 

Supostos assassínios      (só a casa assistira).

Eram fugas secretas de um Orfeu já sem lira

que num tempo remoto      Euridice encantava.

 

 

Fôra a casa de Orfeu      que o tempo arruinava.

Por portas e janelas o vento assobiava

e no canto da casa      era o canto      mentira.

 

 

 

                                                            Dezembro, 2010

 

 

Eu quero ser o livro proibido.

Interdito      maldito mas bem lido

por mancebos de bela juventude.

 

 

Leitura no segredo marginal

atentado ao ditado da moral

bofetada no vício da virtude.

 

 

Que seja a natureza singular

que se abra o portal de par em par

do jardim caprichoso da delícia.

 

 

Que s’interdite só para atrair

que seja mais valia proibir

o sentido secreto da malícia.

 

 

 

                                                        Dezembro, 2010.