Instantâneos 2

Instantâneos 2

 

 

                               Seleção

 

Na mesma casa mas sem fazer caso

Na mesma cama mas sem fazer drama

Na convivência mas com paciência

Suave sem projecto do presente

Encanto do instante permanente

- Tu dás-me a tua mão      eu vou contigo.

 

 

 

                                   I

 

 

 

- Porque não há-de ser o poema   prosa aparente

Se há tanta prosa às fatias ?

- O que é o poema senão a palavra consentida

Rio da palavra a correr livremente

Seja qual for o ritmo do curso

E com rima ou sem rima      a palavra corrente ?

 

Sem correntes      sem águas apartadas.

A palavra natural corre

Através de mim que sou mistério

E a leva pela mão      à folha de papel.

 

A música do rio é música escutada.

Livremente sonora é a corrente.

A liberdade poética é

A liberdade da palavra

No recreio do ser.

 

 

O teu poema não fala de ti.

Tu estás em ti mesmo

Anjo do espelho nos olhos.

Diante de ti

O poeta não precisa da palavra

E falando de ti

Cala.

 

 

Tu estás em ti mesmo e és a fonte.

Há outras coisas para lá da palavra

E o poema é um só      repartido pelos dias.

 

 

 

 

 

                                    II

 

 

 

Uma maneira de meditar em público:

Abrir um livro e aparentar leitura.

Isso facilita o silêncio da palavra

O coração bate mais devagar

O andamento é lento

A leveza é sorriso.

 

 

 

Mas conseguir abrir um caderno

E começar a escrever      escrevendo o poema

É a palavra que regressa      livre

Do silêncio.

Sem medo.

Sem máscara.

Sem desejo.

 

 

 

 

                                 III

 

 

 

Sentado numa lanchonette      esperando por ele

O deus do espelho nos olhos

Cabelo de medusa

Rosto maravilha do Sem Nome

E que tudo se consente sem cuidado.

 

Aqui t’espero todavia por me haveres ensinado

Que o ser não é somente da palavra.

 

Obrigado      meu deus      por um só dia !

 

 

 

 

                                 IV

 

 

 

Desenhar outras coisas pelo  meio das letras

Mostra-nos que a palavra é apenas desenho.

E o desenho designa.

A palavra esconde a criança.

 

Então      tu lembras-te d’esperar o deus que não regressa

O coração cavalga mais depressa

O andamento cansa

O pesadelo pesa.

Tu esqueces que o anjo não tem nome

E chamas ilusão ao deus que traz

Espelho transparente sobre os olhos.

 

 

Os anjos são os deuses quando jovens

E o deus      além de tarde      vem diferente.

 

 

 

                                  V

 

 

 

Diferente vem o deus por ser o tempo

Em seu mudar constante.

Que dele não s’espere compromisso

Mas somente o capricho do instante.

Os deuses não pertencem nem se casam

E não são exclusivo de ninguém.

Em mestres      nos ensinam      naturais

Que os encontros são pontos casuais

E a memória      miragem.

 

 

A carga cultural do verbo ter

Os deuses nos ensinam a largar.

 

 

Sem apego      sem posse      sem ciúme

O deus leva o poeta a praticar

Aquilo que por ele fora dito.

 

Pela graça divina de um arcanjo poeta

Acto      é poema      no poeta papel.

 

 

 

 

 

                            VI

 

 

 

Fora-do-tempo que no tempo mora

Mas sem cuidar do tempo demorado.

É poeta o divino se mostrando

E divino o poeta deslumbrado.

 

 

 

Infantilmente impune é sempre o deus.

A nenhum      peça contas      do que passa

Aquele que por ele for chamado.

Divino é ser o tempo consentido

A ponto de não mais haver passado.

 

 

 

                           VIII

 

 

 

Vão os deuses passando      distraídos

A caminho do sol.

E na senda da luz      os deuses poisam

Nas luas que vagueiam pelas ruas

Das noites sem farol.

 

 

 

                                 IX

 

 

 

Que divino é o tempo sem memória.

Criança no recreio      a pular inocente

De planeta em planeta      a caminho do sol.

 

 

Reconheça o poeta a divindade

No espelho que o deus traz sobre os olhos.

 

 

E os deuses são poetas que deslumbram

Poetas descobrindo ser divinos.

 

 

 

 

                                 X

 

 

 

Os deuses são rapazes      de rostos largos e marcados

Olhos grandes      rasgados e doirados

E cabelos no ar      ao natural.

 

 

E falam sabiamente      com a simplicidade

Que vem de não haver dualidade

Em pesado sabor de bem e mal.

 

 

 

                                  XI

 

 

 

Os deuses são pintores pintando o paraíso

E pintam      como velhos      a visão da criança.

 

 

Os deuses são actores interpretando o tempo

E a máscara      é o rosto verdadeiro.

 

 

Os deuses são reis magos a seguirem o sol

E a magia dos deuses      é o sol no espelho.

 

 

Os deuses são espelhos nos mostrando

Que os deuses somos nós.

 

 

 

 

                               XI

 

 

 

Tu escreves na porta      que passaste.

 

 

Eu estou no museu onde t’encontro

À porta do teatro onde me viste

A teu lado sentado sem te ver.

 

 

 

Assim      os deuses tecem

O acaso aparente.

Mas por baixo da palavra que descreve

Outra palavra brilha que revela

O sentido cifrado.

 

Dados são      os ditos da jogada

E o poeta se recria a decifrar

A palavra ditada.

 

 

 

 

                               XIII

 

 

 

Branco é o anjo      revestido de negro

Do esqueleto ao véu.

 

 

E do lixo que apanha pela rua

O anjo faz o luxo

Que dele faz a lua.

 

 

 

 

                             XIV

 

 

 

Os seus olhos cavalgam delirantes

Seu rosto de corcel desenfreado.

 

 

E de negras missangas      suas mãos

Colhem papoilas brancas

Do asfalto molhado.

 

 

 

 

                                 XV

 

 

 

Na palavra feita carne      no princípio do fim

O anjo é

Perseguido

Aprisionado

Evadido

Despedaçado.

Explosão suicida capital de cega luz

Brilho de branco pó      sobr’espelho vazio.

 

 

 

Na palavra feita imagem      após-tudo recria.

E o mundo pintado      é nítido      perfeito      repousado.

O sonho é seu clima

E nada sendo feio      nada pesa.

 

 

Assim      angelical      o deus viaja

Para seu pai      o sol.

 

 

 

                               XVI

 

 

 

No geito do cabelo sobre a testa

Havia o desenhar de leve sombra.

Romântica mulher em fim de tarde

Na Grécia de um relógio sem ponteiros.

 

 

 

 

 

                               XVII

 

 

 

(Assim      o anjo me aparece

Na imagem miragem da memória.

É numa Grécia que só dista um século

De poeta inglês em branco linho

E gosto pelo belo masculino.)

 

 

 

Azul do céu      azul do mar      O resto é branco.

A luz é transparente      o ar é puro.

E na sombra que faz o seu cabelo

O andrógino deus mostra ao poeta

Uma bela mulher de renda preta.

  

 

E à beira da falésia      em cadeira de verga

A mulher      de perfil      contempla Apolo

Brincando com Jacinto à beira-mar.

 

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Eles estavam nus

E de pé      frente a frente.

Porém      não se tocavam.

Dois punhais se cruzavam

Entre as pernas e o ventre. 

Eles estavam nus

E de pé      frente a frente.

 

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Éramos colegas e trocávamos punhetas

Pelas tardes de sol      em vez das aulas.

  

 

Sem solidão      sem apego      sem romance

Pelo prazer sem nome.

 

 

Erva      esperma      perfume      primavera.

Outro falo na mão.

 

 

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Para ti      guarda-sol      perto de mim

Perto da árvore      do mar      da serra.

 

 

Vejo moços e moças a jogar uma bola

E a bola      é amarela.

 

 

Circular Páráti no centro de uma esfera.

 

 

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De gaiolas abertas são as árvores

No quintal do passarinheiro

  

Mas a porta se fecha sobre o canto

Do corpo marinheiro

 

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Pela janela aberta      serpenteiam      leves

As vozes das mulheres      bebendo chá.

 

 

E o sol....  brilha      tardio      nas cerejas

Do bolo inglês      na bandeja de prata.

 

 

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Quisera recolher-me no seu peito

 

 

No silêncio onde nasce      ser nascido

E sem a procurar      me percorrer

  

Sem quasi dar por isso      ser seu leito

  

No encanto do canto acontecido

Nem antes nem depois      Apenas ser

 

 

 

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