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Ultimato

Ultimato

     Seleção 

 

Orfeu      não serei eu mas eu medito Orfeu.

Eu não desdito Orfeu       é Orfeu que me dita

Mas por vezes      sucede eu errar por desdita

e minha pena péna      de sua pena aflita.

 

 

Que na minha versão de seu verso desnudo

escriba que sou dele      faço dele estilista.

Das figuras d’estilo figura quasi tudo

que sem Orfeu trair      lhe restaure o museu

numa nova versão por si mesmo revista.

 

 

Sempre sua sintaxe foi revolta e classe

filigranada sempre      barroca mas não oca.

Sua lira delira      sem pudor nem disfarce

quando um belo mancebo o abrace na boca.

 

 

 

Por toda a vida fui      teu fiel servidor.

Por toda a eternidade      és o meu ditador

da desordem oculta num poema fugaz.

 

 

Escriba meditante de lírico ditado

quando em transe me ditas teu poema inspirado

pela jovem beleza de um perfil de rapaz.

 

 

O teu nome é Orfeu      visitaste o inferno.

Euridice é uma estátua que cegou de te olhar

fascinada que foi por teu mistério eterno.

 

Tua lira reflete o ritmo do mar.

O teu canto verbal ameniza o inverno.

E o sabor da palavra mora em teu paladar.

 

 

 

 

 

A Morte ameaça Orfeu:

Ou tu vens até mim

e corajosamente      aceitas que eu te abrace

enlace

e à força de apertar      te ponha fim

 - ou me forças a ir ao teu encontro

e que se passe      o mesmo desenlace

mas forçando a tua cobardia

à luz do dia.

 

 

Orfeu não respondeu.

Conforme o prometido      a Morte procedeu.

 

Último ato

do Ultimato da Morte à Poesia.

 

 

 

A palavra e o tempo.

A palavra contemplando o tempo

revela ser o vento seu mistério

mister e desidério.

  

A palavra pára o tempo disparado

advento  da paragem do vento.

A palavra diz      Pára

e o tempo se detem      fotografado.

 

 

Miragem da paragem       do vento já passado

imagem revelada      afixada

no templo da palavra      no museu.

  

Mas o vento      atravessando o templo

desenlaça  os lassos laços

da luz que dá nós cegos nos cadarços

das sandálias d’Orfeu.

 

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(seleção 2)

 

 

                             

 x

 

 

Todas as palavras são cruzadas

 

para passar o tempo distraído

 

da paragem do tempo consumido.

 

 

 

 

 

Consumado é o tempo que      passante

 

sem qualquer duração      é apenas instante

 

calado na mudez da palavra bordada

 

na palidez insone da fria madrugada.

 

 

 

 

 

Moscardo prisioneiro numa teia de aranha

 

o tempo foi travado por sua própria manha

 

de velar a paragem do tempo já passado

 

e por já não passar      para sempre parado.

 

 

 

 

 

Que todo o passo passa a não passar de vez

 

que o feito se desfaz daquilo que se fez

 

não restando senão o mito da memória.

 

 

 

 

 

E assim      o mito tece      a sua própria história.

 

 

 

 

 

                                               Março,  2011.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                         XI

 

 

 

 

 

Dar à luz e devolver à escuridão

 

o mesmo são

 

descontada que for por ser miragem

 

a falsa duração.

 

 

 

 

 

O que passa parou no mesmo instante

 

em que passou.

 

Sem passo a dar ou dado

 

sem imagem

 

a dança da mudança terminou.

 

 

 

 

 

 

 

                                               Março, 2011.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                        XII

 

 

 

 

 

Em sua aparição o tempo se reduz

 

a ser alteração      a ser mudança.

 

O tempo é mutação que se produz

 

no seio da lembrança.

 

 

 

 

 

O tempo é a presença da diferença

 

entre o que vejo agora e antes vi.

 

Por isso      sem lembrança nã há tempo:

 

não sentirei     não sinto      não senti.

 

 

 

 

 

Sentir no infinito não consente

 

presença do passado no presente

 

e regresso ao presente no futuro.

 

 

 

 

 

Se com tempo contemplo o movimento

 

se mudança consinto no momento

 

sem tempo me deparo contra muro.

 

 

 

 

 

 

 

                                              Março, 2011.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                      XIII

 

 

 

 

 

Não  vejo a coisa em si      Só vejo imagem

 

daquilo que já vi.

 

Saber é recordar      a consciência

 

é representação      repetição

 

ensaio da memória

 

legenda      mito      história      narrativa

 

tragédia      da nossa condiçao de ser mortal

 

no palco teatral

 

da nossa inevitável contingência

 

de ser em carne viva.

 

 

 

 

 

Permanente impermanência      do que é temporal

 

no temporal do tempo.

 

Não vejo      não sinto      Penso e repito.

 

Nostálgico do mito

 

(ao seu regresso      aberto)

 

não conheço      Imagino.

 

- Imagem ?

 

- Não !      Miragem...

 

(O espelho é deserto.)

 

 

 

 

 

 

 

                                               Março, 2011.

 

 

 

 

 

                           XIV

 

 

 

 

 

Redespertado para a sabedoria pelo seu musageta*

 

sem suspiro      sem pranto      sem lamento

 

discretamente vou largando o lastro

 

que o tempo faz pesar cada vez mais.

 

 

 

 

 

Vá eu morrendo um pouco      dia a dia

 

sem adiar por temer

 

nem apressar por querer.

 

No treino de aprender a não prender

 

vá eu me descolando sempre mais

 

daquilo que gravito habituado

 

seja futuro ou passado.

 

Que passado ou a passar

 

do tempo não se distraia

 

para evitar que se caia

 

na ilusão de durar.

 

Que s’esteja no deserto

 

como se em casa estivesse.

 

Que o vício de viver se não encubra

 

de ser a compulsão que transparece.

 

E que a morte se descubra

 

de peito aberto.

 

- Depois d’a noite ser      que o tempo cesse.

 

 

 

                                                      Março, 2011.

 

______________________

 

* “A morte é (...) o génio inspirador ou musageta da filosofia (...).”  Schopenhauer

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                          XV...

 

 

 

 

 

Branco do fundo sob letra negra

 

a rimar nitidez com limpeza do ar.

 

Amarelo do sol que o girassol reflete

 

quando o sol é poente

 

e o balão aparece do levante nascente

 

entre o céu e o mar.

 

 

 

 

 

A viagem termina num andamento lento.

 

O termo da viagem reflete o nascimento

 

e a noite anuncia

 

o regresso do dia.

 

 

 

 

 

Assim      no mesmo instante

 

o regresso a poente é regresso a levante

 

que nesse mesmo instante      principia.

 

 

 

 

 

 

 

                                                     Março, 2011.

 

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 seleção 2

 

                            ...XVI

 

 

 

 

 

 

 

Que a memória s’extinga      nada resta

 

da nossa tão vaidosa consciência.

 

Presente nada é senão presença

 

de mítica miragem manifesta.

 

Lugar branco de um quadro em sua ausência.

 

 

 

 

 

Imagem do que foi      não representa.

 

Inventa.

 

Mnésia é a facécia

 

que o receio da morte nos contou.

 

Pensamos que lembramos      Só mentimos

 

a paragem do tempo que passou.

 

 

 

 

 

 

 

                                              Abril, 2011.